Topo

Dr. Kalil

Doação de órgãos: a lição do caubói Woody que todos deveriam seguir

Roberto Kalil

29/07/2019 04h00

iStock

Toy Story 4 é um filme para crianças e adultos de todas as idades. Entre as muitas cenas tocantes dos brinquedos que ganham vida e sentimentos quando os humanos não estão olhando, há uma em especial que nos mostra a importância da doação. Como não quero deixar ninguém bravo comigo pelo spoiler, sugiro que assistam à animação, e fiquem atentos para os momentos de decisão do caubói Woody. Ao aceitar doar uma pequenina parte de seu corpo, o boneco demonstra um dos mais nobres sentimentos humanos: a solidariedade.

Assim como Woody, quando uma pessoa se torna um doador de órgãos, ela demonstra toda sua generosidade e desprendimento. No Brasil, as estatísticas do Sistema Nacional de Transplantes demonstram que, aproximadamente, 40 mil brasileiros precisam passar por algum tipo transplante e aguardam por doadores — sendo que destes, 190 esperam por transplante de pulmão, e 360 necessitam de transplante de coração.

Somente no Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, hospital de referência mundial em doenças cardiovasculares e pulmonares que tenho a honra de presidir, 20 crianças e 40 adultos esperam por transplante de coração (em virtude de insuficiência cardíaca em fase avançada), e 50 pacientes aguardam por transplante de pulmão. No estado de São Paulo, 220 pacientes esperam por um coração.

O programa de transplantes do InCor é um exemplo para o Brasil e já salvou diversas vidas. Desde 1985, mais de mil pacientes já foram submetidos ao procedimento na instituição. Hoje, realizamos mais de 100 transplantes de órgãos torácicos no InCor anualmente, e isto se deve, sobretudo, ao investimento institucional na criação de um Núcleo de Transplantes, que reúne médicos e multiprofissionais trabalhando exclusivamente com o procedimento.

Além disso, as parcerias estabelecidas pelo InCor com a Força Aérea Brasileira (FAB), a Polícia Militar do Estado de São Paulo, e a Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo para a utilização de aeronaves, helicópteros e mesmo para fretamento de voos, são fundamentais — uma vez que quase 50% dos nossos transplantes são realizados com captações à distância (acima de 50 Km).

O transplante de coração é o tratamento definitivo da insuficiência cardíaca avançada: doença grave, caracterizada por fraqueza do músculo cardíaco, que resulta na incapacidade do coração em transportar sangue e oxigênio por todo o organismo. No Brasil, estima-se que a doença atinja mais de 5 milhões de pessoas, sendo a principal causa de internação hospitalar. O período de espera por um coração é, na maioria das vezes, um tempo de angústia e de sofrimento que pode durar, em média, seis meses. Neste período, 20% a 30% dos pacientes morrem, e uma boa parte fica internada em leitos de emergência ou de terapia intensiva — onde muitas vezes desenvolvem complicações que acabam por impedir a realização do transplante.

O procedimento melhorou muito com os novos medicamentos disponíveis, e com o controle de rejeição. Participar da realização de um transplante cardíaco bem sucedido é uma das maiores realizações que um médico pode vivenciar. Uma pessoa muitas vezes restrita a um leito, sem força para respirar, alimentar ou viver ganha uma nova chance, uma nova vida. E a partir dali, passa a reescrever sua história.

A taxa de sucesso atual de um transplante de coração é de 90%, e vida com qualidade é alcançada por meio desse ato. Entretanto, necessitamos de muitos mais órgãos do que os que hoje são disponíveis para doação. Enquanto esse problema da escassez de doadores não for solucionado, milhares de pacientes morrerão. Para isso, a saúde pública brasileira tem que melhorar. Somente assim poderemos aumentar a captação de órgãos.

O potencial doador é, na maioria das vezes, um paciente que teve derrame cerebral (AVC) ou um trauma cranioencefálico, que evoluiu para morte encefálica. É indispensável que o potencial doador seja bem atendido e cuidado nos hospitais, e é necessário que haja a profissionalização do sistema de captação de órgãos, em parceria com o estados e municípios, além do aprimoramento da política regional de doações. Entretanto, para que essas ações resultem em transplantes bem sucedidos e vidas salvas, é essencial que as famílias compreendam o significado da doação de órgãos, e que essa manifestação de solidariedade e compaixão seja disseminada pela sociedade como um todo.

A alta taxa de recusa familiar para doação de órgãos é um problema grave no país. Dados do Ministério da Saúde apontam que mais de 40% da população brasileira não aceita doar órgãos de parentes falecidos com diagnóstico de morte cerebral. Precisamos discutir esse assunto de forma aberta e clara: o ato da doação de órgãos é genuíno, significa salvar vidas.

Por tudo isso, depois de ver Toy Story 4, aproveite a lição do filme para conversar com a família e com os amigos. Mire-se no exemplo do Woody, salve vidas. Seja você também um doador.

Sobre o Autor

Roberto Kalil Filho é médico cardiologista, professor titular da disciplina de Cardiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), presidente do Instituto do Coração (inCor/HCFMUSP) e diretor do Centro de Cardiologia do Hospital Sírio-Libanês. É responsável pelo portal de saúde Dr Kalil Coração & Vida, consultor do quadro Bem Estar, do programa ‘Encontro’, da Rede Globo, e estreou o programa Minuto do Coração, na Jovem Pan.

Sobre o Blog

Professor titular de Cardiologia, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Roberto Kalil Filho vai falar sobre saúde do coração, e de outros temas relacionados a bem-estar, como longevidade, exercícios físicos e alimentação saudável. Dr.Kalil, que também preside o Instituto do Coração (InCor) e dirige o Departamento de Cardiologia do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, vai compartilhar sugestões para que os brasileiros vivam mais e melhor. E não é difícil. Segundo ele, basta ter uma rotina equilibrada e cuidar bem do coração.